Problemas financeiros de distribuidoras podem ser sintoma de crise maior, diz Kelman

Por Andréa Antunes Julho 24, 2023

Problemas financeiros de distribuidoras podem ser sintoma de crise maior, diz Kelman

Rota de insustentabilidade do setor elétrico está sendo acelerada, diz Kelman

Os problemas financeiros enfrentados por distribuidoras de energia elétrica do Amazonas e do Rio de Janeiro, como a Amazonas Energia, Light e Enel-RJ, podem não ser exceções e, sim, o sintoma de uma crise de dimensão maior no setor elétrico brasileiro. Hoje existem incentivos para aumentar a produção de energia de fontes renováveis não para atender nova demanda, mas, sim para diminuir a carga no ambiente cativo. Isso faz com que as distribuidoras fiquem super contratadas. O custo total de atendimento de todos os consumidores aumenta. Alguns ganham, outros perdem. Cria-se a espiral da morte. Essa é uma hipótese que Jerson Kelman, ex-diretor geral da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) e da ANA (Agência Nacional das Águas) tem pensado no cenário atual. Em 2001, Kelman comandou a equipe que analisou as causas do racionamento de energia elétrica.

Para ele, sinais recentes – como a discussão de obrigatoriedade de contratação de energia solar pelas distribuidoras, o que poderia aumentar os custos em R$ 1 bilhão para o setor, e subsídios pode estar sendo ser acelerada. A seguir os principais trechos da entrevista concedida à

Agência iNFRA – O senhor disse recentemente que o setor elétrico se encaminha para uma crise histórica. Por quê? Jerson Kelman – Nós vivemos uma rota de insustentabilidade. Existem incentivos para aumentar a produção de energia de fontes renováveis não para atender nova demanda, mas, sim para diminuir a carga que atualmente é atendida no ambiente cativo por fontes indispensáveis para a garantia da segurança energética. Isso faz com que as distribuidoras fiquem super contratadas. O custo total de atendimento de todos os consumidores aumenta. Alguns ganham, outros perdem. Cria-se a espiral da morte. Acho que precisamos cumprir o que já está acertado, mas é preciso não criar novos incentivos que desequilibrem ainda mais a relação entre oferta e demanda. Percebo que os lobbies permanecem em atividade. Já estamos numa situação difícil hoje e com perspectivas de acelerar mais ainda a rota da insustentabilidade.

Recentemente, houve uma discussão sobre a criação de obrigação de contratação pelas distribuidoras de energia solar para o Minha Casa, Minha Vida. A iniciativa, que segundo o governo poderia criar uma conta de R$ 1 bilhão por ano, foi vetada pelo governo há poucos dias. É um sinal de que as pressões permanecem? Sim. Vêem-se procedimentos iniciados no Legislativo para atender interesses específicos, sem preocupação com a sustentabilidade do sistema como um todo. Eu temo que venham outras. Há a tentativa de intervenção do Legislativo naquela regulação da ANEEL sobre o sinal locacional para cálculo da TUST, tarifa de transmissão, um tema essencialmente regulatório. Nós abrimos uma caixa de Pandora.

E como se fecha essa caixa? Em 2001, no racionamento, havia problemas que vinham de antes e culminaram com a escassez e a redução obrigatória do consumo. Aí todos se sentaram e saiu uma solução. Agora temos uma disfuncionalidade diferente. Não estou conseguindo ver de que maneira isso vai cessar, porque nós não teremos uma crise súbita de falta de energia. O que podemos é ver o elo mais fraco dessa cadeia, a distribuidora, começar a pipocar por causa da espiral da morte, em que um elo vai tendo problemas e isso acaba sendo transferido para outro segmento, até que todos sofrem grandes perdas. A distribuição no mundo inteiro é vista como um negócio de baixo risco e, portanto, de baixo retorno. É um negócio tipicamente para fundo de pensão interessado em dividendos previsíveis. Aqui não. O histórico mostra que nós temos uma quantidade muito grande de distribuidoras enfrentando dificuldades. A crise atual não é de falta de energia, no sentido de capacidade de produzir quilowatt hora ou transportar quilowatt hora. Pode ser a incapacidade, mesmo gerencial ou econômica, das empresas distribuidoras de continuar prestando o seu papel. Pode ser que isso que a gente vê aqui no Rio de Janeiro e no Amazonas, em vez de ser exceções, talvez sejam os primeiros sintomas de uma crise de dimensão maior no país. Mas eu não tenho certeza disso. É uma hipótese. Eu não tenho elementos para afirmar isso com segurança.

O setor discute nesse momento a renovação dos ativos de concessão de distribuição. Isso cria uma oportunidade? Eu tenho diversas preocupações. Em 2008, meu último ano como diretor-geral da ANEEL, a média nacional das perdas não técnicas – a real e a regulatória – foram respectivamente 16,2% e 11,5% sobre o mercado de baixa tensão faturado. Como a diferença entre as perdas não técnicas reais e regulatórias são arcadas pelos acionistas, achávamos que em pouco tempo ocorreria a convergência. Porém, a meta de 2008 só foi atingida ano passado. Nessa altura, em 2022, a meta regulatória já não era mais 11,5%, e, sim, 8,4%. É claro que a meta regulatória deve ser menor do que a real para incentivar ações de combate ao furto. Porém, ao longo desse período de 14 anos, essa diferença foi sempre maior do que 3%, causando uma significativa e permanente sangria. Em boa hora a ANEEL criou o Sandbox (uma autorização temporária para que distribuidoras possam testar modelos de tarifas com base em diferentes técnicas e tecnologias) para a realização de experimentos regulatórios que talvez ensejem a adoção de novas abordagens tecnológicas e sociais para o enfrentamento do problema. O desafio de algumas distribuidoras tem piorado com o avanço da GD (Geração Distribuída) Solar. Ninguém é contra energia renovável e a descentralização da produção. O problema são as regras de alocação dos custos sistêmicos que beneficiam desnecessariamente quem adere à GD. Essas regras faziam sentido no passado, mas não fazem mais porque causam o descasamento entre a conta de luz e a capacidade de pagamento dos consumidores cativos.

Tem-se falado muito no setor que é preciso um pacto para evitar novos subsídios e melhorar a situação das empresas. Pacto é factível? Primeiro, eu acho que deve, sim, ser perseguida uma solução de convergência dentro setor. Esse entendimento que o Fase (Fórum das Associações do Setor Elétrico) está buscando é altamente meritório. É possível mapear pontos em que há muita convergência e se possa avançar sem problemas, como a separação entre lastro e energia. Agora eu não acredito que o pacto seja a solução para todos os problemas e que essa solução decorrerá inteiramente de uma articulação dentro do setor elétrico. É preciso que haja também uma ação política do Executivo junto ao Congresso. O governo não pode esperar que as soluções para muitos conflitos e sinais econômicos equivocados lhe seja oferecido de bandeja pelos atores do setor. São muitos interesses em jogo. É preciso que o governo entre em campo e faça a arbitragem.

Tem havido uma interferência grande do Congresso no setor elétrico, que deixou de resolver os seus problemas internamente. Como reduzir a interferência do Legislativo? Deveria ser utilizada mais intensamente a análise do impacto regulatório tarifário de cada uma das medidas propostas. Na questão do Minha Casa Minha Vida, foi dito o impacto que a obrigatoriedade de compra pelas distribuidoras poderia causar. Acho que cabe ao governo reverberar mais esse tipo de informação, dar mais transparência e mais publicidade para as consequências deletérias para a sociedade de ações que obedeçam a lobbies localizados.

O setor está preparado para o cenário das mudanças climáticas? As mudanças climáticas são um fenômeno de décadas, isso implica muitas avaliações e dados. Do lado do consumo, o principal efeito será no ar-condicionado, que será cada vez mais usado. O horário de ponta no meio da tarde demanda disponibilidade de potência, como se viu na crise hídrica de 2021, quando o país chegou a sofrer risco de não atendimento da ponta. Isso torna a questão de valorizar as fontes pelos atributos ainda mais importante. A EPE e o ONS terão de caminhar para definir quais serão os requisitos necessários à segurança do sistema e quais são as fontes que dispõem desses atributos.

O governo brasileiro tem falado em subsídios para o hidrogênio verde, enquanto Europa e Estados Unidos subvencionam. Como o senhor analisa isso? Com preocupação. Nós temos de nos unir contra mais subsídios. A agenda de transição energética brasileira não deve ser uma cópia da europeia ou americana. Lá o subsídio faz sentido. Aqui não. Nossa matriz é renovável. Há sobreoferta de energia. O hidrogênio vai decolar no Brasil se os europeus de fato oferecerem contratos de compra de compra e venda de longo prazo, tipo PPAs (Power Purchase Agreements). Hoje temos muitos Memorandos de Entendimento assinados, poucos acordos concretos firmados. Se tivermos de pensar em um segmento a incentivar, eu sugiro a seria eletrificação de frota de ônibus urbano, que aumentaria o consumo, diminuiria a poluição local e, é claro, a emissão de gases de efeito estufa.

Fonte: Agencia INFRA – texto de Roberto Rockmann