Foto: Arquivo Pessoal

O Comitê Permanente de Saneamento da Academia Nacional de Engenharia (Cosane) encaminhou à Agência Nacional de Águas (ANA) e outras entidades um documento elaborado pelo grupo com orientações regulatórias para a ANA. O comitê é coordenado pelo professor da UFRJ, Dr Jerson Kelman, membro da ANE e ex-diretor geral da ANA, da Aneel e ex-presidente da Light e da Sabesp.

À Frente do Cosane, a convite do presidente da entidade, Francis Bogossian, o engenheiro Jerson Kelman montou um grupo de profissionais com variadas experiências relacionadas ao saneamento para debater como a ANE pode contribuir para melhorar o serviço de saneamento.

O documento com orientações à ANA é o primeiro do grupo que discutirá, ainda em 2021, a estrutura tarifária e a qualificação dos dirigentes e servidores de agências reguladoras. Nesta entrevista, Jerson Kelman fala sobre o documento e os desafios do setor de saneamento no país.

ANE – Recentemente, o Comitê coordenado pelo sr. emitiu um posicionamento com orientações regulatórias para a ANA. Por que o grupou priorizou a questão regulatória?

Jerson Kelman – A multiplicidade de regras e a incerteza regulatória explicam, pelo menos parcialmente, o atraso do saneamento quando comparado com outros serviços públicos no Brasil – por exemplo, eletricidade – ou quando comparado ao que é praticado em países com renda per capita semelhante à nossa. Por isso a Lei 14.026/2020 atribui à ANA a responsabilidade de produzir normas regulatórias gerais para o setor. Como o Cosane reúne um grupo de profissionais com variadas experiências relacionadas ao saneamento, é natural que queiramos contribuir conceitualmente para que a ANA realize a sua missão da melhor possível.


ANE – Qual o objetivo do documento e sua principal contribuição?

Jerson Kelman – O documento é uma contribuição da ANE à ANA para regulamentação do uso de sistema unitário, de acordo com a definição constante Art. 3º, item XIX do novo Marco do Saneamento, Lei Federal n. 14.026/20 de 15 de julho de 2020. A principal contribuição é reconhecer uma situação de fato e tentar fazer de um limão uma limonada. O limão: a despeito dos méritos do sistema separador absoluto, frequentemente o esgoto sanitário e as águas pluviais de áreas urbanas escoam conjuntamente pela rede de drenagem, quando existente, mesmo quando não projetada para essa dupla finalidade. A limonada: a interceptação do escoamento das redes de drenagem para condução a estações de tratamento nos dias sem chuva ou de baixa intensidade pluviométrica (o chamado tratamento em tempo seco) permite antecipar a diminuição de poluição dos cursos de água.


ANE – O País tem diversos problemas relacionados à questão do saneamento. Qual é o hoje o principal entrave do setor? 

 Jerson Kelman – O setor de saneamento precisa passar por um choque de produtividade. Ou seja, fazer mais com menos. Os incentivos econômicos para os prestadores de serviço, públicos ou privados, deve ser focado na entrega de resultados – por exemplo, rios limpos – e não na construção de obras que frequentemente não são prioritárias e às vezes sequer são concluídas. Se inauguradas nem sempre funcionam a contento. A crise fiscal talvez force essa transformação: como não há mais como depender do “dinheiro fácil” oriundo de impostos pagos pelos contribuintes, a arrecadação de tarifas por serviços efetivamente prestados aumentará de importância, forçando as companhias a melhorar as respectivas  governanças.

ANE – O sr. acredita que conseguiremos universalizar o saneamento até 2033?

Jerson Kelman – Se fosse legislador, não teria incluído essa obrigação na lei. Trata-se de típica cláusula de contrato de concessão que deveria ser negociada caso a caso. É necessário pesar, de um lado, o eventual impacto tarifário do ritmo de investimentos necessários à universalização em cada caso específico e, de outro, quanto a população beneficiada pode e quer pagar. A disponibilidade de pagar pela água – um serviço público apropriado pelo núcleo familiar, assim como eletricidade ou gás encanado – é muito maior do que o desejo a pagar pela coleta e tratamento de esgoto – um serviço que beneficia toda a comunidade e não apenas o núcleo familiar. Não se trata aqui de juízo de valor e sim da simples observação dos fatos. Dito isso, como não sou legislador, cabe a mim e a todos que militam no setor de saneamento fazer o melhor possível para que a determinação legal seja cumprida.

ANE – Que temas ainda devem ser debatidos pelo grupo? 

Jerson Kelman – Há dois temas já selecionados para discussão no âmbito do Cosane. Se houver convergência, poderemos dar a nossa contribuição, assim como fizemos no caso da interface entre drenagem e coleta de esgotos. O primeiro tema é a estrutura tarifária. Já começamos uma discussão cobrindo diversos tópicos:

Diferenciação entre cobrança pela disponibilidade do serviço e cobrança pelo uso do serviço.

Faz sentido que o preço unitário da água cresça com o consumo? Aparentemente trata-se de um estímulo ao uso parcimoniosa da água. Certamente faria todo o sentido se a cobrança incidisse sobre cada indivíduo. Porém, a cobrança incide sobre o núcleo familiar (no caso mais simples) e o consumo per capita numa residência humilde, onde moram muitas pessoas, pode até ser baixo. Mas não o consumo familiar. Ou seja, a cobrança crescente por blocos funciona como um Robin Hood às avessas.

Faz sentido diferenciar tarifas por classes de consumidores (residencial, comercial, industrial)? É justo que o preço unitário da água seja muito maior para um hospital ou escola do que para uma residência de classe média ou alta?

Como equacionar a arrecadação de cidades de veraneio, em que é necessário construir cara infraestrutura só plenamente utilizada poucos dias por ano?

Como definir as famílias que têm direito à tarifa social? Pelo atual método que exige burocrático processamento no varejo, caso a caso, ou por atacado, por meio da definição de manchas urbanas definidas por indicadores objetivos (tipo IDH), cujos moradores teriam direito à tarifa social?

O segundo tema diz respeito à qualificação dos dirigentes e servidores das agências reguladoras, tanto na esfera federal – a ANA – quanto nas esferas estadual e municipal. Partimos do conceito que de nada adianta o atual arcabouço legal, que valoriza a independência e capacidade técnica das agências, se os recursos humanos não estiverem à altura da responsabilidade. Teoricamente, os candidatos a dirigente da ANA, assim como os que dirigem as demais agências, já passam por algum escrutínio. No caso da ANA, uma sabatina do Senado Federal. Porém, essas sabatinas são em geral falhas. Digo isso por experiência própria. Em meu livro – Desafios do Regulador – narro que quando fui indicado para a presidência da ANA compareci a sessão da Comissão de Infraestrutura do Senado e fui aprovado sem responder a uma única pergunta. Quando se avalia como os dirigentes das agências estaduais ou municipais são escolhidos, o processo às vezes é até pior.

Não quero dizer com isso que todos os dirigentes de agências reguladoras sejam incapazes. Muito pelo contrário!! Eu também passei por processo seletivo falho e não me julgo incapaz. Mas é preciso adotar um processo que separe o joio do trigo. Qual processo? Essa é a pergunta que o Cosane se propõe a tentar responder.